Tenha uma vida…

 

Esse não é um texto fácil de digerir, nem curto. Falar sobre as nossas contradições é um tanto quanto desconfortável ao mesmo tempo em que seja necessário. Também não é um assunto novo, pelo contrário é sempre revisitado de diversos ângulos quanto possível.

A vida e nossas ideias a respeito dela não são exclusividade de uma teoria, ou de uma área do conhecimento, é assunto de interesse de todos, aliás, ter uma postura investigativa em relação a nossa própria mente faz muito sentido, já que temos uma e não vamos poder nos livrar dela.

Costumamos ter uma ideia de como a vida deveria ser. Sonhamos com a nossa casa, carro, apartamento, com as viagens, aquela pessoa especial do nosso lado, filhos, gato, cachorro, papagaio, dinheiro na conta, infinitas possibilidades. Queremos muito realizar o sonho altamente vendável, exemplo: “tenha uma vida épica (extraordinária, sensacional, ou o adjetivo que quiser por aqui)”. Se experimentarmos algum nível de desconforto na vida, seja no quesito trabalho, família, ou relações íntimas – e considerando que a vida não é perfeita, sempre vai rolar uma pedrinha no sapato – inevitavelmente nossa primeira reação é de querer nos livrar dele.

E é justamente por isso que estamos correndo, lutando, investindo nossos esforços por esse objetivo. Queremos evoluir, queremos ser melhores, queremos sentir que nosso sacrifício vale a pena. Queremos aquele cargo, aquela casa, aquele carro, aquele namorado(a), ou aquela relação incrível sem grandes contratempos.

Querer…desejar…é algo tão inscrito no nosso DNA que ainda que não queiramos nada disso não nos livramos de querer alguma coisa, de desejar aquela vida tranquila, pacata, vendendo coco na praia e morando em uma cabana, passando café no coador de pano, pés descalços no chão batido, ou morando em alguma comunidade afastada, longe de todas as pessoas que fizeram parte da nossa história, desapegados e livres.

Correndo assim como estamos fazendo, levamos muito tempo para perceber que na verdade não temos para onde fugir. Como afinal, conseguiríamos fugir de nós mesmos?! Do nosso olhar?! Dos sintomas que somos?

Se conversarmos mais de perto uns com os outros vamos perceber que no fundo ninguém realmente acredita nessa promessa de vida perfeita (ok, alguns acreditam), sem sofrimentos, sem desafios, sem obstáculos. Ainda assim, a criança interior que habita em nós segue acreditando nesse milagre que vai resolver nossas vidas definitivamente. Não conseguimos realmente nos livrar desse impulso em direção a essa felicidade, a esse lugar sem sofrimento, ao Paraíso, ao Nirvana, àquilo que Freud chamou de “estado inorgânico”. Algo em nós escapa completamente do alcançável, do explicável. Custa profundamente aos seres humanos aceitarem o quão pequeno é o seu conhecimento sobre si mesmo e sobre o universo, e que ainda é maior o preço a se pagar ao descobrir que mesmo sabendo algumas coisas, ou muitas, pode tão pouco diante de si e da vida como um todo.

Não tem nada de errado em buscarmos evoluir, em desejarmos criar a vida que sonhamos, mas ajuda se percebemos que estamos caminhando para algo, ou se apenas estamos fugindo do inevitável… Fuja o quanto puder, mas acabará encontrando o seu sintoma na próxima esquina.

O eterno retorno de Nietzsche nos convida a parar de correr, a parar de brigar, a parar de querer uma vida que não existe. Freud faz o mesmo com a psicanálise. Ambos nos colocam diante de uma verdade dolorida: estamos não só vivendo em direção à morte (disso sabemos), mas vivendo desejando morrer.

Querer uma vida sem dor, nem sofrimento é como se não quiséssemos viver. Isso que nos puxa para um lado e nos torna criativos, ativos e pulsantes, que nos permite crescer e realizar grandes coisas, não se separa do que nos segura, nos congela, nos paralisa, e nos mortifica. As coisas vão acabar, as águas vão rolar, a vida vai seguir… Ao longo do tempo nos tornamos seres incapazes de aproveitar o momento presente. Ressentidos por um passado que já se foi, ou então por um futuro que nunca chega e quando chega, já queremos outra coisa…

Como é viver uma vida sem poder tirar nada? Como é viver sem nenhuma promessa de felicidade? De carro do sonho, de família feliz, de casa na praia, de amigos reunidos? Como é viver de novo a sua própria vida assim exatamente como foi vivida? Com todos os dias de chuva e de sol? Com todos os dias mornos? Com todas as noites de angústia? Com as noites de prazer? Com aquele beijo especial e com o dia em que fomos traídos? Como é não tirar nada? Nem mesmo o dia em que perdemos aquela pessoa importante? Ou o dia que nos sentimos despedaçados por dentro? Sem tirar o momento em que cometemos o maior dos erros da nossa vida?

A vida real é um tanto assustadora. Ela inclui o verso e o inverso. A pergunta então é afinal por que queremos tanto que a vida seja algo que ela não é?! Viver não é se livrar do sofrimento. A vida extraordinária de verdade é a vida inteira, íntegra, com suas pedras no caminho, seus sabores e dissabores. Talvez o que nos falte seja olhar a vida de uma perspectiva que inclua o sofrimento e a criatividade que aflora a partir dele.

O pensamento é a nossa dignidade, porque nos permite vencer o sofrimento, não por meio da eliminação da dor como tem tentado a modernidade, com suas infinitas fábricas de ilusão, mas por meio da afirmação da vida em sua totalidade, ou seja, por meio de uma interpretação da vida que inclua o sofrimento – Viviane Mosé.

Você pode gostar também de